sábado, 15 de março de 2008

''Morrer É Fácil''


No livro ''O Médico Doente'', o oncologista Drauzio Varella relembra as três semanas em que quase sucumbiu à febre amarela e conclui: a idéia da morte e angustia apavora mais do que a iminência dela

* por Armando Antenore


O mesmo Brasil que hoje se alarma com a febre amarela registrou, em 2004, apenas cinco casos da doença. Três dos infectados morreram. Entre os que sobreviveram, está Drauzio Varella. Uma desconcertante ironia explica a contaminação do oncologista, famoso tanto pelas qualidades de clínico como pelas séries sobre educação e saúde que apresenta no programa Fantástico, da Rede Globo. Ele costuma viajar para a região do rio Negro, em plena Amazônia, onde coordena pesquisas com plantas medicinais. Na floresta, levou a picada do mosquito que transmite o vírus da febre e só a manifestou porque não renovara a vacina que a neutraliza, vencida havia duas décadas. O doutor que percorre o país ensinando hábitos imprescindíveis à prevenção de inúmeros males, negligenciou as próprias lições.


No pequenino O Médico Doente, sétimo título de uma bibliografia que inclui o best-seller Estação Carandiru, Drauzio recorda em detalhes e com notável honestidade o martírio imposto pelo vírus, tão letal quanto o temerário Ebola. Foram três semanas de internação, sob a tirania de sintomas que iam de dores insuportáveis a náusea, confusão mental e absoluta falta de apetite. Numa entrevista de duas horas em São Paulo, cidade onde nasceu e mantém um consultório, o especialista, de 65 anos, conversou sobre o livro recém-lançado.


BRAVO!: Em O Médico Doente, você escreve que "morrer é fácil". A reflexão causa espanto principalmente por aparecer num dos trechos mais dramáticos da narrativa, quando você está muito fraco e recebe a notícia de que precisa ir para a UTI. A morte batia à porta, e você a classificava de fácil... Estranho, não?
Drauzio Varella:
Realmente, naquela ocasião tive a certeza de que morreria em pouco tempo. Mais 24 ou 48 horas e pronto... Os exames indicavam que meu fígado caminhava para o colapso. Havia perda de proteína pelos rins, os pulmões trabalhavam com dificuldade, o coração acusava uma arritmia. Era o que chamamos de "falência de múltiplos órgãos". Talvez outros médicos, no meu lugar, conseguissem deixar de fazer uma análise técnica da situação. Eu não conseguia — dimensionava exatamente a gravidade do quadro. Ainda assim, a partir de um determinado momento, me resignei. Como sou oncologista desde 1972, assisti à morte de várias pessoas. E notei que, quando a doença aperta o cerco devagar, acaba preparando a vítima para o fim. À medida que avança, enfraquece o paciente e tira-lhe qualquer possibilidade de reação. Ele abdica de lutar e deseja apenas ficar quieto. Não reivindica nada nem se desespera. Por incrível que pareça, morrer vai se tornando fácil. Foi justamente o que ocorreu comigo. Pude comprovar na carne que a perspectiva da morte nos angustia e apavora bem mais do que a iminência dela.


Então você não se surpreendeu com o próprio comportamento?
Pelo contrário: surpreendi-me muito. Uma coisa é você observar os pacientes. Outra é você estar ali, na cama, agindo como eles. Não imaginei que iria me entregar daquele modo. Pensei que nunca abandonaria a ânsia de viver, que brigaria sem tréguas se caísse doente. Eu, desistir? Não, de forma nenhuma! Sou um esportista, um sujeito ativo, que corre de lá para cá! Meus pacientes, sim — via-os jogar a toalha. Mas eu?!? Caso me perguntassem no hospital: "Você quer viver?". É claro que responderia: "Quero!". Teoricamente, queria mesmo. Só que, em termos concretos, imperava uma espécie de rendição.


E o afeto? No livro, você conta que se desligou afetivamente de sua irmã, de sua mulher, de suas duas filhas e de sua neta quando a doença recrudesceu.
Pois é... Pessoas queridíssimas que, de repente, perderam o significado afetivo para mim. Minha mulher, por exemplo [a atriz Regina Braga]. Somos casados há 26 anos! E tenho paixão pelas minhas filhas, com quem procuro falar diariamente. Entretanto, no ápice da crise, os laços emocionais que me uniam a elas se desfizeram. Sabe quando você esbarra em um amigo que não encontra desde a infância? Você o reconhece, percebe que não se trata de um estranho. Após cinco minutos de conversa, porém, você se conscientiza de que já não habitam o mesmo mundo. Aquilo que os ligava desapareceu. Foi o que se passou no hospital em relação às figuras mais importantes de minha vida. Levei um susto.


Assustou-se na hora ou só depois, relembrando o episódio?
Não, na hora. Testemunhava a minha apatia e me intrigava: "O que está acontecendo aqui?". De novo, imaginava que apenas os outros pudessem manifestar algo parecido. Tive pacientes que se distanciaram dos familiares às vésperas da morte e, de certa maneira, os responsabilizei pelo alheamento. Julguei que reagiam assim porque, ao longo dos anos, construíram elos afetivos um tanto frios e tênues, muito diferentes dos meus, tão repletos de intimidade e amor. Aquela temporada no hospital mostrou que me enganara. Hoje, creio que devemos levar ao pé da letra a tal história de "nasci sozinho, vou morrer sozinho". Para qualquer um de nós, a morte é um processo absolutamente solitário, mesmo que alguém segure a nossa mão nos instantes derradeiros.


Você ainda relata, no livro, que o agravamento da doença lhe roubou momentaneamente o apego pela profissão.
Exato. Enquanto piorava, me dei conta de que a medicina, o consultório, as pesquisas, o atendimento de presos, as campanhas de saúde pública, os prêmios e os artigos escritos não me diziam mais respeito. Lembro-me de um domingo em que vi o meu quadro no Fantástico e não senti nada. Normalmente, me interesso pela série. Presto atenção em cada detalhe para corrigir os defeitos, para melhorar. Daquela vez, ocorreu o inverso - um enorme desprendimento se apoderou de mim. Era como se enxergasse outra pessoa no vídeo. Um personagem entende? Minha trajetória profissional se transformava num filme, que perdia a importância por já estar concluído.


Sob o peso de tamanho desânimo, como você conseguiu virar o jogo e sobreviver?
Difícil apontar um motivo preciso. Talvez a vacina contra a febre amarela que tomei lá atrás e que se encontrava vencida tenha deixado um resto de imunidade. Talvez o meu bom preparo físico e a ausência de doenças de base tenham contribuído — um cardíaco ou diabético provavelmente não escaparia. Enfim... Não dá para explicar tudo. Há uma parte da coisa que é incerta.


O senso comum defende que a vontade de viver e o pensamento positivo dos doentes conduzem à cura. No livro, você rejeita idéias dessa natureza. Por quê?
Porque não existe demonstração científica que as sustente. Lógico que ambos os aspectos ajudam em qualquer circunstância. Sem pensar positivamente, sem acreditar na vida, você nem levanta da cama. Alguém que se submete à quimioterapia enfrentará melhor o tratamento se disser para si mesmo: "Vamos lá! Vou viver!". Agora, afirmar que é possível controlar a doença apenas com a força do pensamento positivo... Pegue o caso de um paciente com câncer de pâncreas disseminado. Vi alguns pensarem de maneira altamente positiva e morrerem em dois, três meses, mas nunca vi nenhum se curar. Considero uma sacanagem espalhar crenças do gênero. Um absurdo, um desrespeito com os doentes, por lhes atribuir responsabilidade sobre algo que não depende exclusivamente deles. Quer dizer, então, que só morrem os fracos, os covardes? Que culpa tem uma criança de 8 meses se sucumbir à leucemia? Ou um idoso de 85 anos se não suportar um câncer de próstata? Há um grau de fatalidade na condição humana que me parece incontornável.


Você também não acredita que as doenças possam derivar de pensamentos ruins ou de neuroses?
Não se trata de acreditar. Medicina não é religião. Costumo cuidar de mulheres com câncer de mama. Às vezes, recebo uma no consultório que me fala: "Puxa, doutor, sei exatamente como arranjei esse tumor". E associa o mal à depressão, à ansiedade, às crises de pânico, à separação do marido. Olhe que terrível: a paciente, já debilitada pelo problema de saúde, ainda se tortura por imaginar que o provocou. Onde arrumam teorias assim? Desconheço trabalhos sérios, organizados, que as comprovem.


Mas uma das críticas que se faz à medicina ocidental é justamente a de fragmentar o ser humano e não estabelecer anexos entre as diferentes instâncias do corpo.
Crítica merecida, aliás. O bom médico deve tentar enxergar o todo. Se ministrar remédio para o fígado, precisa avaliar os efeitos colaterais. Se decidir por uma cirurgia, precisa medir as conseqüências da intervenção no cotidiano do paciente. O que questiono é o exagero. A valorização excessiva do holístico. Hoje se elogia muito a medicina chinesa: "Oh, que maravilha! Aqueles monges velhinhos...". Mas você sabe quanto vivia em média um chinês no início do século 19? Trinta anos! Foram os progressos da medicina ocidental, os antibióticos, as vacinas, que mudaram a história da humanidade. Não adianta discutir.


Você menciona, no livro, o orgulho que os médicos sentem quando conseguem diagnosticar a doença de um paciente. E admite que se trata de uma vaidade um tanto cruel. Você já a identificou em si próprio?
Claro, com freqüência. Quanto mais complicado o quadro, quanto mais divergentes as opiniões sobre o caso, maior o orgulho de acertar o diagnóstico. Parece que uma espécie de júbilo nos inunda. Em determinadas ocasiões, o êxtase se justifica, porque existem chances de cura. Em outras... O que você descobre, às vezes, se revela horrível. No entanto, você se envaidece. Lamenta, mas também se orgulha. É uma sensação paradoxal.


E inescapável?
Inescapável. Não acho que seja um desvio. Prefiro encará-la como uma característica inerente à profissão. Uma alegria próxima à do detetive que soluciona um crime. Ele se satisfaz diante do próprio desempenho. Só que, não raro, o resultado do crime é uma morte.


Você sempre se declarou ateu. Continua se declarando mesmo após a experiência no hospital?
Continuo. Crer ou não em Deus independe de nossa vontade. Não é uma condição passível de se modificar. É uma estrutura de raciocínio. Há quem não tolere a idéia de que as coisas acabam e precise se apoiar no transcendental. Minha cabeça segue por outros caminhos. Não necessito de Deus para explicar a vida na Terra. O darwinismo, a teoria da evolução das espécies, me soa muito mais plausível do que qualquer tese religiosa. E muito mais fascinante! Imaginar que uma molécula primordial se desdobrou até engendrar a biodiversidade imensa que temos hoje... Imaginar que uma samambaia e um elefante possuem um ancestral comum... É maravilhoso! Bem mais poético do que acreditar em um feiticeiro, um ser superior que, de repente, com uma varinha, concebeu os sapos, os homens, os carvalhos. Defender que tudo surgiu de uma única vez, num passe de mágica, destrói a complexidade e a beleza do universo.


Depois de publicar sete livros, incluindo os infantis, você se considera um bom escritor?
Sinceramente, não. Quando me comparo com autores de peso — com os russos, por exemplo, Tolstói, Dostoiévski, Andreiev —, reconheço a distância que me separa deles. Se dedicasse mais tempo à literatura e se lesse mais do que leio, talvez ocupasse outro patamar. Por força da medicina, deixei de mergulhar em romances indispensáveis. Não sobra espaço na agenda! Provavelmente, meu background literário supera o dos médicos em geral (agora mesmo terminei a Ilíada), só que ainda o julgo insatisfatório. De todo modo, procuro escrever com clareza. Meu desafio é produzir textos simples, mas cheios de significados. Quero que a simplicidade expresse uma riqueza de estilo e não o empobrecimento da linguagem. Creio que, desde meu primeiro livro, Estação Carandiru, melhorei nesse sentido. Sem contar que me tornei um pouco mais ousado. Em Estação Carandiru, tinha pudor de me mostrar. Evitava comentários muito pessoais. Já em O Médico Doente, me permito às digressões, me exponho de verdade. É um avanço, não?



Fonte: Bravo Online

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